sábado, 6 de novembro de 2010

Os setenta anos de um mito

E não é que o “velhote” mais genial da arquitetura contemporânea não deixará a história sem homenagear o “Atleta do Século”? Pois é, a gente fica até com uma pitadinha de inveja. A cidade paulista de Santos vai erguer um monumento a Pelé, com formato de uma bola, idealizado por Oscar Niemayer, que começou a esboçar Brasília na mineirice dos rabiscos da Pampulha. No interior desse projeto arquitetônico, hospedar-se-á um Museu, para a preservação da memória de Edson Pelé. Vai ganhar notoriedade, visibilidade, apelo turístico e dividendos financeiros.

Em época de preparativos para a Copa, os investimentos e os projetos hão de ser ousados. Muitos já questionam a viabilidade desses planos milionários e o que se fará depois de haver passado o evento, com todos esses aparatos de engenharia... A reportagem da televisão, num domingo à noite, fazia-nos ver como a China, por exemplo, continua utilizando os espaços criados e remodelados para as olimpíadas que ela promoveu. E assim, somos instados a acreditar que valerá a pena esse gasto do dinheiro público. O memorial do Pelé em Santos, sem dúvida, está sendo um projeto de homens ousados, para reverenciar a história de uma pessoa que é um tremendo exemplo para a juventude atual, carente de símbolos realmente significativos. Principalmente para aqueles que compartilham da mesma etnia.

Enquanto isso, nós aqui no berço do Rei, reconhecemos o anseio geral da população tricordiana de estreitar mais os laços com a insigne celebridade, mas admitimos que a prática não anda muito em sintonia com as intenções. A ironia, talvez, seja uma forma de compensar a frustração coletiva. O “Gordo” plantou estrategicamente à beira da Fernão Dias um belo trabalho artístico, evocando o famoso “soco no ar” de Pelé após a comemoração de um gol. Alguns galhofeiros disseram tratar-se de um arremesso de pedra na “Coca” (!). Piadas à parte, já vi muita gente parada naquele trevo, admirando e tirando fotos...

Pelé representa vários mitos da nossa civilização. O mito do “made self man”, ou seja, do menino de origem humilde que se projetou para o mundo pela força de vontade e pelo impulso do carisma. O mito da fortaleza da raça. É bom que falemos nisso nesse mês dedicado à consciência negra. Em um período em que a sociedade não teria como esconder a sua hipocrisia - devido a discriminação racial latente - ele se auto-afirmou, derrubando barreiras inimagináveis. Enfrentou de modo natural, inconsciente e involuntário a ideologia do “branqueamento” e fez valer com galhardia, a dignidade da sua negritude.

O mito do corpo saudável também é possível de entrever na biografia desse gigante. Por que as academias andam tão freqüentadas? Existe, por certo, a “ditadura da estética”, mas no caso dele, isso não tem relevância. Hoje, aos setenta, conserva a jovialidade pelas qualidades do seu biótipo, pelo beneficio acumulado da prática esportiva, pelo distanciamento dos vícios maléficos. O vigor é o resultante de uma vida primada pelo o equilíbrio.

O mito da imortalidade é algo bastante buscado pelos homens e mulheres da era de tecnologia avançada. Queremos superar limites e viver para sempre. Sabemos que isso não se conquista plenamente no plano físico. Serão nossas ações voltadas para algo realmente meritório que nos imortalizarão. O legado de Pelé haverá de mantê-lo por muito tempo, como destaque único no seu campo de atuação.

Por fim, o mito da universalização, para evitar o outro termo “globalização”, de cunho mais mercadológico. Se bem que, é preciso lembrar que ao tratarmos com ele, também estaremos tratando com um homem empreendedor. O empresário Pelé é um homem com vistas também para o mercado. Tanto é que, uma proposta de bom investimento não seria de todo descartável. Por que não uma empresa de Pelé em sua própria terra?

A consciência de que o mito, agora extrapola os limites geográficos e vai se configurando no mundo todo, imprime serenidade aos conterrâneos, sem com isso querer justificar acomodações que serão imperdoáveis na história local. A questão da preservação da memória é algo que se impõe para a cidade de forma quase inexorável. É certo que existem outras demandas administrativas e o limite dos recursos disponíveis pode não deixar os sonhos correrem à solta. Pode ser que não tenhamos a mesma força e a mesma capacidade de mobilização da cidade paulista, mas não podemos nos conformar em oferecer apenas uma sala na Casa da Cultura, em meio a tantas outras “coisas” igualmente importantes, para documentação do nosso passado, sem que se faça algo para destacar essa deferência justa, educativa e necessária.